Cidades lançam esgoto diretamente no leito do Velho Chico
O cheiro forte que sobe da água do Rio São Francisco e irrita as narinas é estranho para os pescadores, acostumados com a vida ao ar livre. Para quem vem da “cidade grande”, onde mananciais recebem descargas de residências e atividades econômicas, não restam dúvidas: é esgoto. Apenas dois quilômetros abaixo do vertedouro da barragem de Três Marias, na Região Central de Minas, o mau cheiro aparece, acompanhado de lixo que desce pelo Córrego da Barragem Grande.
A medição do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) feita um quilômetro adiante atesta que aquelas águas têm concentração de coliformes fecais 400% superior ao que tolera o Conselho Nacional de Meio Ambiente. Os micro-organismos são indicativo da presença de esgoto, segundo o instituto. Mas isso não é exclusividade de Três Marias. Levantamento feito pelo Estado de Minas com base em dados de 2011 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que, enquanto em todo o território mineiro 25% dos domicílios apresentam saneamento “inadequado”, nas 43 cidades que margeiam o Velho Chico o índice é mais do que o dobro, chegando a 56,8% das moradias.
Entre a mata e os remansos da margem de um dos rios símbolos do Brasil, a poluição ambiental substitui a imagem de vida e a tradição pesqueira por uma cena mais comum a cursos d’água mortos, como o Ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte, ou o Tietê, em São Paulo. Garrafas PET, embalagens de spray, recipientes com graxas, óleos e aditivos automotores se prendem à vegetação e dão um toque de degradação às águas de cheiro forte e cor escura perto de Três Marias. “A gente que desce o rio de barco todo dia fica preocupada. Como é que pode estragar um rio grande desses de uma hora para outra? Quem mora na beira não está aguentando o mau cheiro”, reclama a pescadora Maria Rosilene de Souza, de 40 anos, de Três Marias.
Mais ao norte, em Pirapora, manilhas despontam das barrancas ao lado dos barcos dos pescadores e lançam dejetos malcheirosos diretamente no leito. Às vezes, contam os pescadores, espessos jatos de espuma branca são despejados e descem correnteza abaixo. No Bairro Pernambuco, moradores reclamam que a situação é ainda pior na seca, quando o rio tem volume menor e o esgoto fica mais evidente.
Diante de um líquido escuro que serpenteia depois de escorrer de uma das manilhas na margem do rio, pintando de preto as águas barrentas, o sitiante José Alves, de 70, reclama do odor forte. “Isso que sai da manilha tem um cheiro horrível. As pessoas evitam comer os peixes daqui de perto, porque o gosto é ruim”, afirma. O biólogo Patrick Valim, que trabalha para o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Pirapora, disse que o tratamento do esgoto doméstico é feito. O problema é que, como ocorre nas manilhas identificadas pela reportagem, 60% das residências têm ligações clandestinas que lançam esgoto no São Francisco.
O resultado do despejo sanitário in natura ainda pode ser sentido 330 quilômetros à frente, em Januária, cidade onde apenas 20% do esgoto é tratado. Nesse ponto, segundo o Igam, os índices de coliformes fecais detectados na última análise também superaram em 400% a tolerância estabelecida pela legislação do Conama. “Aqui a situação é mesmo precária. A gente vê as fezes caindo direto no rio”, reclama o morador Moisés Oliveira de Souza, 31, da comunidade de Moradeiras, que fez questão de ir à margem e mexer numa espécie de lama fétida para mostrar o nível de sujeira. No lugar, situado a dois quilômetros do perímetro urbano de Januária, uma grande manilha joga detritos diretamente nas águas do Velho Chico.
Segundo moradores, é esgoto doméstico, vindo da cidade. “Isso é muito ruim. Faz mal para a saúde das pessoas”, define Moisés, que costuma pescar no Velho Chico. “É preciso acabar com o esgoto no rio. Somente assim a gente vai ter melhor qualidade de vida.” O irmão de Moisés, José de Oliveira de Souza, de 24, que também pesca no rio, conta que os dejetos não afetam apenas os peixes, e indica que o nível de poluição pode ser medido pela reação de quem tem contato com o local onde cai o esgoto. “Provocam doença e ‘frieiras’ (micose) no pé de quem pisa.”
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