Chega a ser mais rentável que peixe. E com a dimensão do marzão que “não tem fim”, a sensação de alguns pescadores é de que não vai faltar tartaruga marinha. Por isso, eles as tomam de “presente” quando se engancham na rede de pesca. Mas o que já foi uma mera prática cultural dos povos do mar tornou-se, há alguns anos, uma verdadeira, e lucrativa, máfia do extermínio de tartarugas marinhas. Estima-se em 200 quilos de carne comercializada por semana. Ou aproximadamente R$ 260 mil por ano na atividade proibida por Lei. Os compradores são de Acaraú, Itarema e Fortaleza. Mas podem ser de qualquer lugar o apetite da culinária exótica.
Carapaças e outros restos de tartaruga são encontrados na Praia de Patos, em Itarema. Lá existe um dos comércios mais incrementados. Donos de barracas fazem o comércio, mas escondem a carne em geladeiras de residências populares
Com raras exceções, o abate e comércio são ilegais em todo o mundo. Está no Ceará um dos problemas mais críticos de toda a América Latina. Polícia Federal e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) têm dificuldades de flagrar o abate, tamanha é a articulação dos grupos. Várias operações fracassaram porque, simplesmente, os ilegais foram mais espertos que os fiscais. Como se fôssemos turistas, fomos aos locais de abate e venda e constatamos o discreto comércio do “boi do mar”.
Para não comprometer as investigações em curso sobre a atividade, usaremos nomes fictícios para citar os pescadores, vendedores e atravessadores da carne. Os levantamentos oficiais são feitos principalmente pelo Projeto Tartarugas Marinhas (Tamar), do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMbio).
Desova
O Projeto Tamar tem um núcleo de atuação no Ceará, no distrito de Almofala, em Itarema. Isso porque é no mar, em frente aos municípios de Itarema e Acaraú, no Litoral Oeste, que está uma das principais áreas de alimentação das tartarugas marinhas na América Latina. Vindas da Europa, da América Central e da África, elas fazem uma parada de até dois anos se alimentando e acumulando gordura antes da viagem para desova.
Mas, em muitos casos, a parada é a última, basta que o réptil fique preso no labirinto colocados na captura de peixes, os populares currais de pesca. Com o bicho preso, cabe ao pescador decidir se devolve ao mar aberto ou leva de carga. Mas, para a máfia da pesca ilegal, é diferente: a rede caçoeira, instrumento ilegal usado para a pesca da lagosta, é armadilha para as tartarugas. Sem conseguir subir para respirar a cada meia hora, o animal morre afogado.
Das sete espécies de tartarugas marinhas no mundo, cinco são encontradas no Ceará. A tartaruga verde ou aruanã (Chelonia mydas) é a preferida para o abate. E, como “caiu na rede, é peixe”, o abate começa logo no barco. “É pra fugir da fiscalização”, afirma “Jorge”, pescador da praia de Guajirú e que diz não mexer com isso.
Com o trabalho de conscientização do Projeto Tamar na região sobre a ilegalidade no comércio da carne de tartaruga, falar do assunto pode denunciar a si próprio. Anos atrás, as praias se tornavam verdadeiros abatedouros de aruanãs. Mas, para diminuir as evidências, os abates acontecem em espaços estratégicos do mangue, ou mesmo em alto mar, voltando-se apenas os sacos com a carne proibida.
Venda discreta
“Aruanã? A gente não trabalha com isso não. É proibido. Se o Ibama pega, dá cadeia”, afirma “Fernando”, no Mercado do Peixe, em Acaraú. Mesmo dizendo não conhecer ninguém que comercialize, com a nossa insistência, o vendedor dirige-se, discretamente, para o colega do box ao lado: “Delci, tem algum ‘boi do mar’ aí?”. Em resposta, o homem me olha apenas dizer “tem não… É difícil…” E, depois de algum silêncio: “tem períodos que é mais fácil, aí você pode vir e perguntar por aí…”
Em outra situação, quando quem perguntou foi a Polícia Federal, ao “não” sucedeu-se à abertura do freezer. Quilos e mais quilos de carne proibida. Mas isso tem mais de cinco anos. De lá para cá, o comércio ilegal especializou-se e ficou ainda mais difícil de se flagrar.
Confiança
“Eles tentam fazer uma venda segura, então o comércio é na base da confiança”, afirma Eduardo Lima, engenheiro de pesca e coordenador local do Projeto Tamar. É o principal desbravador do combate ao comércio ilegal.
Embora o Tamar, vinculado ao ICMBio, não tenha poder de fiscalização, basta que avistem qualquer funcionário desse projeto, especialmente Eduardo, para os pescadores empreenderem verdadeira fuga.
“A prática se mantém, mas, além de conscientizar, o trabalho educativo do Tamar os intimidou até certo ponto. Quando sabem que não temos poder de polícia, eles relaxam. Mas o Ibama, que pode fiscalizar e punir, é nosso aliado nesse trabalho difícil”, afirma Eduardo.
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