Talvez não exista nada mais simbólico para a cultura alimentar amazônica do que jaraqui com farinha. Em Manaus o jaraqui é um peixe abundante e barato. O jaraqui frito é uma delícia, que agrada praticamente todos os gostos. Apesar disso, raramente é discutida a sustentabilidade da pesca do jaraqui. Teremos jaraqui no futuro?
A pesca do jaraqui é feita com o uso de redes. Normalmente a pesca é farta. É comum a pesca de centenas de peixe numa única rede. Frequentemente, cardumes enormes resultam em dezenas de milhares de peixes numa única rede. Não sai da minha memória uma cena de alguns anos atrás, quando vi um grupo de pescadores apanharem 50 mil jaraquis de uma só vez. Uma cena fantástica de abundância e fartura da natureza.
O jaraqui é um peixe migratório. No Rio Negro o jaraqui sobe o rio quando está ovado e magro, quando o rio está secando. Com a cheia, no inverno amazônico, os cardumes entram nos igapós, onde se alimentam e engordam. Com o fim do inverno, os cardumes descem o rio, gordos.
A sustentabilidade da pesca é um desafio enorme em todo o mundo, não apenas no Amazonas. Se considerarmos a pesca marinha, 64% dos estoques pesqueiros estão declinando em função da pesca predatória e acima da capacidade de reposição natural. A pesca predatória prejudica os pescadores e a todos os que compram peixe para alimentação. Quanto menor é a produção, maior é o preço. A pesca predatória leva, mais cedo ou mais tarde, ao aumento do preço do pescado. A longo prazo o prejuízo é maior: o peixe desaparece dos barcos de pesca e das bancas das feiras e prateleiras dos supermercados.
Um dos problemas para o manejo sustentável da pesca é fruto de uma lógica simples: se o recurso pesqueiro é de livre acesso, predomina a logica da pesca predatória. Vale a pena pescar tudo e não se justifica deixar um estoque não pescado para o próximo ano.
A boa noticia é que existem diversas iniciativas que estão dando sucesso. Em países como o Chile e Peru, o uso de cotas de pesca e reservas marinhas tem conseguido limitar o volume pescado dentro da capacidade de reposição dos estoques pesqueiros.
Existem também avanços positivos no Amazonas. A criação de Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDSs), reservas extrativistas (Resex) e outras unidades de conservação tem tido um impacto positivo para a pesca. A pesca de pescadores de outros estados e municípios, vem sendo limitada, em beneficio dos moradores das comunidades ribeirinhas. Em paralelo, ações de educação ambiental vêm aumentando a consciência dos pescadores sobre a necessidade de pescar hoje, sem se esquecer de pensar na pesca do próximo ano.
Recentemente tive a oportunidade de acompanhar novamente a pesca do jaraqui no Rio Negro. O sistema tradicional é a pesca de lanço. Um pescador localiza o cardume a partir de uma torre de observação na beira do rio e chama os demais. Segue-se aí uma verdadeira caça ao cardume de jaraquis. Por vezes o cardume entra no igapó e fica horas até sair. Na espera de um momento certo, quando o cardume fica vulnerável, os pescadores fazem o cerco, com uma rede grande, que é puxada até a margem do rio. Neste dia foram 1,5 mil jaraquis pescados numa única rede. E a pesca continua por vários dias, até encher o barco ou começar a terminar o gelo. O peixe é vendido em Manaus por cerca de quarenta reais o cento.
A boa noticia é que a criação da reserva de desenvolvimento sustentável tem trazido bons resultados. A pesca está sendo feita quase que exclusivamente pelas comunidades ribeirinhas. O acesso ao crédito permitiu que essas comunidades comprassem rede e deixassem o aviamento. A consciência ambiental tem levado os pescadores a comprar redes de malha grossa, que deixam os pequenos peixes escapar. Ficam para engordar para o próximo ano. O defeso tem funcionado razoavelmente. Tudo isso, somado, aponta uma receita para a sustentabilidade da pesca do jaraqui. Se esse modelo for aprimorado e ampliado, poderemos viabilizar a sustentabilidade da pesca do jaraqui.
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