Aumenta matança de botos da Amazônia para serem usados como isca de pesca
O crescimento da demanda no Brasil e em países vizinhos de um peixe da Amazônia tem contribuído para a drástica redução da população de botos, uma das espécies mamíferas aquáticas mais simpáticas e dóceis da região. O boto, também conhecido como “golfinho de água doce”, é um animal comum no imaginário da população nativa da Amazônia, e vem sendo vítima de uma matança descontrolada no Amazonas nos últimos anos para que carne e gordura sirvam de isca para a pesca da piracatinga.
No mercado consumidor, a piracatinga (ou urubu d´água) recebeu o nome de douradinha. Foi uma invenção do comércio (pescadores e frigoríficos), que temia a rejeição ao peixe. A escolha não é ao acaso, pois existe outro peixe na região chamado dourado, que é bastante consumido localmente e não tem relação com abate do boto. A douradinha é vendida em filés.
Segundo a Secretaria Estadual de Produção Rural do Amazonas, os maiores consumidores da douradinha são Colômbia e Peru e as regiões Nordeste e Centro-Sul do Brasil. No Amazonas, a demanda é insignificante, pois a população local não tem costume de comer “peixe liso”, como a piracatinga também é conhecida.
Como a população da piracatinga ainda é abundante na bacia amazônica, a pesca – e a consequente matança dos botos – ocorre em todas as calhas da região, do Alto rio Solimões, na fronteira com a Colômbia, ao baixo rio Amazonas, na divisa com o Pará.
A bióloga Sannie Brum, pesquisadora do Programa de Manejo e Conservação de Recursos Pesqueiros do Instituto Piaguaçu-Purus, conta que a piracatinga começou a ser pescada no Brasil para suprir o mercado da Colômbia. Naquele país, o “capaz”, um peixe parecido com a piracatinga e muito apreciado pela população, teve a população reduzida pela sobrepesca.
Ela contou que a piracatinga, primeiramente, era totalmente exportada, já que o amazonense nunca teve o hábito de comer esta espécie. “Os ribeirinhos continuam não consumindo, mas o mercado se expandiu. A piracatinga é muito lucrativa, tanto para os pescadores quanto para os comerciantes (frigoríficos), e nos últimos anos com o nome de ‘filé de douradinha’ este mercado está, além de Manaus, no Nordeste brasileiro e até em São Paulo”, contou a bióloga.
José Leland, assessor da Secretaria Executiva de Pesca e Aquicultura do Amazonas, afirmou que em 2011 o estado enviou aproximadamente 6 mil toneladas de douradinha para o exterior e para outros estados do Brasil. Ele também diz que a pesca da piracatinga sempre ocorreu, mas em escala inexpressiva. No mercado brasileiro, o interesse comercial aumentou nos últimos anos na esteira da exaustão populacional de outro “bagre” da região, a piramutaba.
“Nos últimos cinco anos houve um incremento de 160% de capturas de piracatinga no Amazonas. Houve aumento da demanda e, como consequência, a alternativa foi encontrar uma forma de aumentar a qualidade do pescado. Usando o boto é mais fácil porque o peixe é atraído pela gordura e pelo cheiro exalado de sua carne podre”, disse Leland.
O assessor, que acompanha há alguns anos esta situação, diz ser contra a proibição da pesca da piracatinga, pois acredita que o problema está na ausência de medidas para evitar a morte dos botos. Para ele, se nenhuma medida de fiscalização mais rigorosa for adotada pelos órgãos ambientais, se frigoríficos continuarem fechando os olhos ao problema e se pescadores não forem punidos, a população de botos pode ser reduzida drasticamente e a sua condição ficar mais crítica do que a do peixe-boi, espécie aquática da Amazônia ameaçada de extinção.
“Está cada vez mais visível a redução de botos. A gente quase não vê eles boiando nos rios. A reprodução do boto é muito lenta. Ele só vai ter a sua primeira cria aos oito anos e passa três anos amamentando. E dos botos, o mais frágil é o vermelho (cor-de-rosa), pois é muito doce, não se esquiva, gosta de se aproximar das pessoas”, disse Leland.
Sannie Brum destaca que a exploração da piracatinga pode estar refletindo uma escassez de outros peixes de alto valor comercial, como o pirarucu e o tambaqui, fazendo com que os pescadores procurem outras espécies para obter renda. “Acredito que fomentar novas formas de exploração responsáveis e sustentáveis de recursos pesqueiros seja importante, assim como outras fontes de renda, também neste contexto de sustentabilidade”, afirmou.
A superintendência do Ibama no Amazonas esclarece que a pesca da piracatinga não possui restrições, bastando aos pescadores possuir registro para exercer a profissão e para usar embarcações.
Falta de logística e dificuldades de acesso às áreas impedem que fiscalizações regulares sobre a matança de botos sejam realizadas pelos órgãos ambientais. Os patrulhamentos, apesar de diários, sofrem com a escassez de recursos para as ações de combate às infrações contra a fauna silvestre do Amazonas, que são inúmeras.
O comandante do Batalhão de Policiamento Ambiental do Amazonas, coronel Flávio Diniz, diz que “diariamente os policiais militares estão se empenhado no combate aos crimes ambientais”, mas que o órgão não possui denúncias formalizadas de abate de botos (ou jacarés) para a atividade da pesca da piracatinga. Ele disse que as “poucas informações recebidas” vêm, em sua maioria, de notícias observadas em publicações na internet e em jornais. Diniz admitiu que “não há como negar a existência de tal delito e da necessidade de reprimi-lo imediatamente”.
O coronel afirmou que o último flagrante do Batalhão Ambiental de abate de boto ocorreu em 2012 em municípios na região metropolitana de Manaus. Os pescadores foram presos, mas não há informações se eles continuam detidos. A punição pode ser feita por meio de pagamento de multa.
Geandro Pantoja, chefe da Divisão Técnico-Ambiental do Ibama no Amazonas, disse que o órgão recebe denúncias e informações que indicam a matança de botos e jacarés no Amazonas, mas que “fiscalizar é muito difícil”, já que a atividade criminosa ocorre “silenciosamente nas madrugadas em locais de difícil acesso”.
“Neste ano fizemos algumas autuações por matança de jacarés, embora não se tenha evidenciado correlação com a pesca de piracatinga. Sobre matança de botos, não houve nenhum flagrante”, disse.
Segundo Pantoja, apesar de haver um plano anual de fiscalização estabelecido pelo Ibama, o órgão ainda não conseguiu realizar uma operação específica sobre a questão, devido ao contingenciamento de recursos orçamentários do governo federal no segundo semestre de 2013.
Inquérito
Denúncias sobre a matança de botos não são recentes. Algumas tentativas de sensibilizar os envolvidos foram iniciadas por entidades de pesquisa ligadas à fauna aquática, sem resultados consistentes, até que o Ministério Público Federal do Amazonas instaurou em 2012 um inquérito para investigar todas as ações ligadas ao abate para a pesca da piracatinga. Em outubro passado o MPF realizou a primeira audiência pública em Manaus para discutir o assunto.
O inquérito do MPF questiona inclusive a adoção do nome “douradinha” no mercado para ludibriar o consumidor. Por essa razão, o órgão estuda formas para convencer os frigoríficos a adotar o nome “piracatinga” junto com o nome fantasia – “douradinha”.
Segundo o procurador da República Rafael Rocha, o inquérito abrange todas as etapas referentes ao abate do boto. A ideia é cobrar fiscalização rigorosa dos órgãos ambientais e maior envolvimento do estado e da sociedade para o problema. No curso do inquérito, o MPF pode expedir recomendações e até mesmo ajuizar ações contra os envolvidos.
O MPF também quer alertar o consumidor final, que precisa saber que, indiretamente, está contribuindo para a extinção de uma espécie aquática. “O que se observa é a completa omissão tanto do Estado quanto da iniciativa privada em relação a ações que poderiam pelo menos minimizar este problema. Se a omissão persistir, isso é passível de responsabilização em todas as esferas. Realmente é preciso diálogo e a compreensão de cada gente, mas se nada for feito, vão ser ajuizadas várias ações para combater cada aspecto específico desta situação”, disse Rocha.
Matança aumentou
Apesar da dificuldade de mensurar a mortalidade dos botos nos últimos anos na bacia amazônica, instituições de pesquisa do Amazonas afirmam que entre 2,5 mil e 4 mil cetáceos são abatidos anualmente para servir de isca de peixe. O dado vale apenas para o estado, indicando que este número pode ser maior se for levada em conta a realidade da região.
“As estimativas para a pesca da piracatinga são extremamente difíceis. Estes números inicialmente estimados servem como alertas, pois não são necessários modelos populacionais complexos para concluir que, tratando-se de mamíferos de vida longa, os números são muito acima do que a população naturalmente poderia repor, demonstrando que o boto sofre sérios riscos se esta situação assim se mantiver”, explicou a bióloga.
O Instituto Piagaçu-Purus vem obtendo desde 2005 informações sobre o abate de botos na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus. Mas foi a partir de 2011 que os pesquisadores começaram as coletas sistematizadas. Nos dois últimos anos foi executado um projeto mais específico para caracterizar a pesca e o uso dos golfinhos nesta região em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Para a bióloga, uma forma de reduzir a mortalidade dos botos seria oferecer iscas alternativas, como vísceras de outros animais e resíduos de frango, apesar de sua pouca funcionalidade diante da grande escala da imensidão da Amazônia. “Temos um projeto-piloto que está testando algumas iscas baseadas em várias expedições que realizamos e na literatura de outros locais que têm o mesmo problema”, disse.
Sannie também afirmou que a fiscalização é essencial, mesmo que se trabalhe em outras frentes, como a conscientização dos pescadores e a educação de crianças e jovens. “Reforçamos que a fiscalização é essencial, não apenas com os pescadores, mas também maior controle sobre a produção deste pescado e a forma como está sendo comercializado.”
O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) enviou nota informando sobre as ações do governo do Estado para a questão. Segundo o Ipaam, foi criado um grupo de trabalho para atuar em várias frentes no combate ao abate do boto. O Ipaam disse ainda que das 97 indústrias do ramo com processos no órgão, 70% foram vistoriados.
Também foi realizada sensibilização nestas indústrias para que não adquiram a piracatinga que possa ter sido pescada de forma criminosa. O Ipaam informou que encontra-se sob a forma de minuta um documento que vai instituir o Relatório de Procedência a ser exigido dos frigoríficos de pescado.
O Ipaam informou que executa de 10 a 15 missões de fiscalização por ano e o último registro de matança de boto ocorreu em 2012, na RSD Pigaçu-Purus. Em 2013, no município de Tapauá, foram identificados 20 botos mortos, em uma ação descoberta pelo prefeito do município. Não há informações de pescadores presos.
“O presidente do Ipaam, Antonio Stroski, acredita que os que matam o boto sabem que estão praticando crime ambiental, por isso agem de forma a dificultar o flagrante pela fiscalização, um entrave para identificar os responsáveis pela matança e de que forma fomentam uma cadeia comercial da piracatinga”, disse a nota.
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