O tema “paralisação da pesca” em Mato Grosso do Sul voltou à cena e, claro, sempre com a turma do contra e a do a favor. Nesta última, está o biólogo, especialista em biologia de peixes neotropicais, Thomaz Lipparelli, que já exerceu o cargo de superintendente da Pesca, no Estado. Autoridade no assunto, ele fala, nesta entrevista, porque é a favor da moratória de cinco anos para a pesca em Mato Grosso do Sul. Entre os argumentos, o de que haja tempo de se ter os estudos necessários para um novo ordenamento pesqueiro, novas estratégias, novas regulamentações da atividade.
Lipparelli concedeu entrevista ao jornal Correio do estado e respondeu ha alguns questionamentos, veja abaixo
A pesca é um dos setores importantes da economia de MS. Há pelo menos 15 anos, o senhor é um estudioso dos rios e defende a paralisação imediata da pesca no Estado. Por quê?
A paralisação da pesca é provisória, momentânea, para que haja tempo de se ter os estudos necessários para um novo ordenamento pesqueiro, que constitui novas estratégias, novas regulamentações da atividade. Não há possibilidade de se desenvolver um novo padrão, um novo modelo de gestão em pesca se não tirarmos os atores que, atualmente, estão atuando na atividade pesqueira, principalmente aqueles mais vulneráveis, que no caso são os pescadores profissionais. Então, defendo a moratória – ou um período de paralisação – para que o órgão, o Estado, como um todo possa redefinir as estratégias das políticas de pesca para as atividades ou para o Estado de MS. Neste período, é preciso que se pense não só num modelo de gestão, mas nas alternativas de trabalho e renda para os pescadores, sobretudo aos pescadores ribeirinhos. É bem diferente: pescador profissional é uma coisa e pescador ribeirinho é outra. O profissional, quase 70% ou 80% são oriundos de cidades, pessoas que têm uma atividade profissional e exercem a atividade pesqueira como uma complementação na sua renda. Nossa preocupação é com o profissional ribeirinho. Que nesta paralisação de 5 anos tenha-se políticas voltadas a estes pescadores ribeirinhos, que se dê assistência a eles.
Se nada for feito, os ribeirinhos podem até ficar sem ter o que comer.
Podem ficar, mas neste caso, tem que se abrir a exceções. E o porquê da pesca profissional? Ela, hoje, está montada dentro de uma estrutura da década de 70. Há necessidade de se criar um novo modelo de gestão de pesca para MS.
Isso já existe em algum outro estado?
Não, MS sempre foi o expoente, sempre inovou, lançou novidades. Por exemplo: o período de defeso [no qual se protegem os peixes para a piracema] foi criado em MS e acabou sendo adotado no País como um todo. Nós temos que inovar, temos que ter, em momento de crise, a capacidade de propor soluções. É o que está faltando.
A proposta é: paralisar para se pensar num novo modelo de gestão de pesca para Mato Grosso do Sul. Outra questão equivocada é a dos representantes dos pescadores, de que eles devem ampliar seu quadro de associados. Isso não faz bem para os próprios associados, já que se estaria ampliando o número de pescadores. Deveria ser o contrário, restringir para garantir aquilo que é necessário para manter estas populações. Mas os dirigentes dos sindicatos optaram por ampliar as suas bases em todo o Estado, e o resultado, hoje, vi na mídia, é ter mais de 8 mil pescadores. Isso é um absurdo. Nós fizemos um pente fino, abrimos mais de mil processos na Polícia Federal contra estes falsos pescadores. Nós tínhamos 1,7 mil, quando nós deixamos, cadastrados com uma carteira, que é uma autorização ambiental. Porque há uma outra questão também. Eles estão questionando novamente um assunto que já foi pauta, discutido e resolvido. O governo federal, por meio do Ministério da Pesca, oferece uma carteira de identidade profissional. A atividade da pesca é uma atividade a ser licenciada, precisa que o órgão local emita um documento chamado autorização para a pesca. Este é um ato previsto na legislação. E as pessoas exaltadas e, principalmente, aqueles que desconhecem a matéria acham que não, que é necessário ter apenas uma carteira, o que não é verdade. É preciso ter uma carteira de identidade profissional para ter direitos aos seus benefícios, previstos em lei. É preciso ter uma autorização ambiental para o exercício da atividade. Não estamos falando em mercadoria, mas numa atividade ambientalmente sustentável.
O que as autoridades no assunto não levaram em consideração, ao longo dos anos, para que a situação chegasse a este ponto? As hidrelétricas colaboraram com o problema?
As autoridades tomaram decisões equivocadas. O modelo de gestão que foi adotado é o modelo da pesca profissional industrial, que foi mantido. Este é o lado ruim. Quanto às hidrelétricas não ofereceram problemas, pelo menos não no Pantanal. Na Bacia do Rio Paraná sim, com certeza. Mas na Bacia do Rio Paraguai, na Hidrelétrica do Manso, por exemplo, foi feito um estudo detalhado e conseguiram calibrar o sistema de abertura e fechamento das comportas, para não comprometer o fluxo migratório das espécies. E o Manso é hoje uma referência internacional, graças a estes estudos, que mostram que é possível compartilhar a conservação e a exploração, mas com critérios. O grande problema em Mato Grosso do Sul é que nós não temos estudos, essa é a verdade. Nós temos um grupo de estudiosos, numa instituição pública federal que emite boletins. Mas não são estudos, são apenas opiniões técnicas daqueles que estão ali. Para o estudo, você tem que ter mapeamento maior, uma estrutura maior. Em 2005, nós criamos o Centro de Monitoramento de Recursos Pesqueiros, para atender a esta demanda que já estava efervescendo, que é a questão da moratória. O que fazer? Vamos fechar e vamos fazer o que? Vamos estudar. Então, montamos o centro, foi uma parceria entre os governos de MT, MS, com a participação de universidades públicas e privadas, de ambos os estados, e conseguimos juntar 18 pesquisadores envolvidos com a questão de monitoramento. Nós estávamos tecnicamente prontos, com decreto publicado no Diário Oficial, buscando emenda parlamentar para a construção do centro. E deixamos tudo para o atual governo. Ao que parece, não foi considerado prioritário.
A moratória de 5 anos é tempo suficiente para que se realinhe o setor, não só na recuperação de espécies, como na manutenção de estratégias para que isso não ocorra mais?
O tempo é curto, mas é suficiente para, primeiro, você capacitar os pescadores profissionais, para que eles, quando retornarem, tenham a opção de voltar ou não para a atividade pesqueira. Se voltar, será com uma nova mentalidade, com uma nova postura em relação à sua atividade, com mais informações sobre a conservação dos estoques. Isso é possível em cinco anos. Do lado do empresário da área de turismo de pesca, ele não seria afetado. Acredito que implantando o pesque e solte, onde peixe nenhum pode ser embarcado, se retirem todos os modelos de armazenamento de peixes dentro das embarcações, não há problema algum.
O que se pescou se come e pronto. Assim como o pescador ribeirinho. Ele também terá sua atividade pesqueira, ele continuará pescando para o seu sustento, mas não pode comercializar. O pescador desportivo, que vai com seu próprio carro, pode continuar pescando, mas não pode embarcar pescados. Com estas medidas é suficiente. Agora, é necessário também que o governo crie uma nova política de gestão de pesca. Ele tem que se reequipar. A fiscalização é precária. Precisamos ampliar os investimentos da Polícia Militar Ambiental, capacitando mais sua equipe técnica, novos equipamentos, melhorar o grau de informação, trabalhar com inteligência, o que hoje não se consegue. Os recursos continuam sendo poucos, há uma desmotivação da tropa porque a legislação é muito flexível.
O indivíduo é apreendido e, com a legislação, juridicamente, em uma semana, consegue sair e volta a praticar tudo de novo. Então, é preciso ter um arcabouço jurídico reformulado, punição mais severa para aquele que for pego praticando pesca predatória. Porque este período vai ser considerado como pesca predatória. Então, a pesca esportiva controlada, o pescador ribeirinho sabendo de suas limitações, o pescador profissional sendo capacitado, treinado e mantido o seu seguro desemprego durante este período todo, cabe só ao Estado reequipar e enfrentar o momento de crise com soluções. E como trazer soluções? Nós temos que inovar. Mas nada a ser inventado, pois já existem experiências muito boas. A minha defesa é de implantar em MS o sistema de cotas após a moratória, que será muito bem-vindo, e no mundo todo já é feito assim. Então, não há necessidade de se ampliar a atividade pesqueira se você tem limites.
A moratória tem que ser vista assim, que tenha os estudos necessários para definirmos quando pode pescar, quem pode pescar, o peixe que vai poder retirar, qual equipamento será utilizado, que época será feita estas pescas. E, claro, aí tem todo o lado social, têm os programas, a questão econômica também, para quem vai vender, para que não haja atravessadores. Mais uma coisa importante, que eu acho que vale a pena colocar: se fizermos tudo isso não haverá nenhum resultado se os países limítrofes – Paraguai e Bolívia – também não cumprirem o atual acordo existente, um tratado internacional de conservação dos recursos pesqueiros da Bacia do Rio Paraguai. Porque a pesca predatória acontece no território brasileiro, mas o produto que é extraído, os peixes, eles são exportados para os países vizinhos, que exportam novamente para o Brasil, como se fosse uma produção deles.
O ministro da Pesca e Aquicultura, Eduardo Lopes, afirmou que não existe base técnica que justifique a moratória e enfatizou que esses setores, por dependerem efetivamente da preservação dos recursos pesqueiros, normalmente promovem a conservação do Pantanal e querem a paralisação. O que o senhor tem a dizer sobre a posição do órgão que representa o setor?
O ministério da Pesca está focando suas atividades no Estado, no sentido de ampliar a produção de pescado em cativeiro. Isso é muito positivo. Aliás, esta é uma das mais importantes alternativas para os nossos pescadores ribeirinhos: produzirem pescados também. As cidades que estão nesta região ou que têm a atividade da pesca profissional deveriam estar investindo nesta área também. O ministro, provavelmente, desconhece a realidade. Os estudos existem, mas são todos pulverizados nas universidades. Não existe um centro de informações: nem o governo do Estado e nem o federal têm um centro de informações dos estoques pesqueiros de MS. Eu acho que o Ministério da Pesca e o governo do Estado, junto ao Ibama, Ministério do Meio Ambiente e Ministério do Turismo, deveriam criar o Centro de Monitoramento de Recursos Pesqueiros, porque nós estamos falando de um bioma que é único no mundo todo. Estamos falando de um lugar pequeno, extremamente frágil, que tem uma atividade econômica muito importante que é a pecuária, que está substituindo os herbívoros que existiam no passado e que foram extintos na região, mas que precisa de um olhar diferenciado. Acho que a primeira coisa a ser feita é o recadastramento destes pescadores para identificar de fato quem são eles. Aí, então, projetar uma política específica para este contingente.