Sobre a hidrelétrica de Belo Monte, biólogos e pescadores concordam e afirmam a mesma coisa, cada um na sua forma de explicar: a usina expulsou o peixe do rio. Pescadores trazem o saber tradicional e o conhecimento originário de quem sabe como o Rio Xingu vive e respira. Os outros, pessoas das letras e dos livros, trazem o conhecimento acadêmico consigo, traduzindo as informações científicas que o rio lhes propõe como objeto de estudo. Ambos concordam que a ictiofauna foi a primeira vítima desse empreendimento. O peixe morreu ou se mudou. A partir daí, aconteceu uma reação em cadeia no ecossistema e na sociedade do entorno da barragem.
O pescador abandonou o remo para aprender palavras difíceis como “condicionantes”, “verbas de reparação” e “mitigação de impactos”. Restou apenas a luta por uma reparação financeira e cansativa, que é a cobrança diária da classe para a Norte Energia, consórcio responsável pelo destino do pescado e dos pescadores. Antes, as articulações eram para conseguir o sustento no rio, mas hoje eles se articulam para garantir o direito de existir.
O represamento da água para a produção de energia nos municípios de Vitória do Xingu, Altamira e Brasil Novo — com impacto em outros municípios e até estados próximos como o Mato Grosso — é tema de inúmeros trabalhos de pós-graduação desenvolvidos no Pará e no Brasil. E, mais do que isso, é motivo das principais lutas de classe e processos judiciais envolvendo os povos tradicionais e originários, que tiravam do Rio Xingu seu sustento e, principalmente, que tinham o rio como símbolo de sua existência e identidade.
O fim de uma cadeia alimentar
Toda essa linha de acontecimentos evoluiu a partir da quebra de uma cadeia natural que se desenvolvia no Rio Xingu. A ictiocoria — dispersão de frutos e sementes por parte de peixes frugívoros — foi o principal processo que se encerrou com a barragem de Belo Monte. Da mesma forma, o peixe que se alimenta de outros peixes deixou seu território também em busca de alimento. E, por último, o pescador precisou partir em busca desses peixes. Uma cadeia de nutrição que deixou de existir, mas que trouxe consequências financeiras e existenciais para o povo do rio. A barragem não levou isso em consideração em nenhum momento, mesmo com estudos em mãos.
O biólogo Edilberto Leonardo Costa Rodrigues, estudante de Pós-Graduação em Biodiversidade e Conservação da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Altamira, fala sobre esses impactos na cadeia de alimentação: “Tem algumas espécies de peixe, como o acari-zebra [Hypancistrus zebra], que já se encontram ameaçadas. Não é um peixe de consumo; é ornamental e tem sua venda direcionada para aquaristas, mas tem sua função no ecossistema”.
Edilberto, que trabalha num projeto de aquicultura de peixes ornamentais apoiado pela Norte Energia e participa do Monitoramento da Ictiofauna e Investigação Taxonômica na Área de Influência da UHE de Belo Monte, diz que o acari-zebra chegou a entrar em situação de vulnerabilidade, o que significa próximo da extinção, porque é uma espécie endêmica. “Hoje alguns indivíduos são criados aqui ou em laboratório, mas a gente já vê o retorno dessa espécie ao rio como incerto porque um peixe criado em laboratório e depois solto no rio não cumpre seu papel natural”, diz.
Ao ser perguntado se a Norte Energia levou em consideração esses impactos na cadeia natural do rio, Rodrigues responde que não: “Se qualquer estudo fosse realmente levado em consideração, então a barragem não teria acontecido. A boniteza daqui acabou”
Os relatos de pescadores sobre o pós-represamento coincidem com os estudos sobre o tema. São relatos que constroem essa mesma lógica a partir dos saberes tradicionais. Os frutos e os peixes estão muito magros, dizem eles. O nível da água não chega aonde chegava antes e, por isso, muitas árvores que entravam no período de frutificação acabam por despejar seus frutos no seco. Ou seja, em áreas não alagadas. Na busca por alimento e por território, os peixes acabam entrando nos igapós atrás de comida e abandonam áreas próximas ao Rio Xingu, onde antes era possível obter renda com a pesca e sustentar financeiramente a atividade — o que inclui gastos com gelo, gasolina, diesel, equipamentos de pesca e manutenção das voadeiras e rabetas.
O pescador conhecido como Mambira, ou Geraldo Costa dos Santos, expulso do rio que lhe dava sustenta, relata que a fêma do pacu está seca, sem gordura e sem saída para venda e consumo. “A boniteza daqui acabou. Quando a gente nasce, a gente já sonha em segurar o remo, mas agora não dá mais pra bancar a despesa da pesca”, lamenta. “A gente sabe pescar em água doce e correnteza. Com a água parada, só é pau seco e não tem o que o peixe comer. Essas frutas, sarão, caferana, é tudo fruta que eles comem e que não tem mais. Não tem mais condições.”
Não bastasse isso, a Norte Energia se propôs a organizar a transição do pescador para o ofício de agricultor e se comprometeu a liberar apetrechos e estrutura para a produção de roças e hortas domésticas para 785 grupos familiares de pescadores identificados. Prometeu a execução de tanques de piscicultura para cada colônia de pescadores e veículos para cada colônia que fosse trabalhar na produção familiar. Também ficou na promessa.
Os pescadores foram retirados da beira do rio e de suas casas para serem remanejados para os chamados Rucs, Reassentamentos Urbanos Coletivos, bairros construídos com uma estrutura parca e incapaz de manter a sociabilidade de uma classe que antes era acostumada com o rio em frente às suas casas e que, de repente, tem de conviver com a distância, a falta da água em suas torneiras e a falta da saúde e educação para seus filhos. Existem cinco Rucs em Altamira, bairros periféricos sem estrutura social e sem políticas públicas. Por causa de Belo Monte, o pescador não deixou apenas de pescar. Ele deixou de ser pescador.
À espera de uma voadeira
Márcio da Silva Marinho é morador de um dos Rucs, de nome Jatobá, e fala sobre sua relação com a Norte Energia, que já aprovou a entrega de uma voadeira — embarcação de pequeno porte — e de equipamentos de pesca. Mas até agora nada. “Tem um depósito lá na Perimetral cheio de voadeira e eles não entregam. Eles enrolam mesmo”, diz.
“Eu vivo de pesca que herdei de meu pai e meu avô. As malhadeiras que eles dão são muito fracas e a tela é puída. É material que não presta”.
Eliza de Assis Ribeiro ainda vende peixe na porta de sua casa e consegue uns 300 reais por mês. Ela é uma das poucas pessoas que conseguiram receber alguns dos direitos que a Norte Energia se comprometeu a dispor, o que inclui uma verba de reparação no valor de 20 mil reais, uma voadeira, motor e equipamentos. Mas o local de pesca agora é muito mais distante, diz ela.
Antes de Belo Monte, a pesca era possível em áreas mais próximas, o que não exigia o frete para chegar até o rio (que custa entre 70 e 90 reais) e nem o custo dobrado com gasolina e gelo para manter o pescado fresco. Hoje, diz Eliza, eles precisam contornar cachoeiras e áreas de correnteza com pedras que tornam a viagem para pescar muito mais longa, cara e perigosa. Dependendo da época, demoram uma hora e vinte subindo o rio para chegar no ponto de pescaria.
“O ruim disso tudo é que hoje eu tô longe do rio e não vale mais a pena pescar pra ganhar dinheiro porque eles afastaram a gente da água e o peixe foi embora pra longe”, diz ela. “A gente gasta mais pra trabalhar do que pra ganhar dinheiro com a pesca.”
Quanto custa a vida do rio?
Antônia Melo é uma das fundadoras do Movimento Xingu Vivo para Sempre, a maior referência em combate a Belo Monte, e conta como é a relação da Norte Energia com os pescadores locais: “Quando o ribeirinho ia vender seu peixe na cidade e depois voltava, a casa dele já tinha sido queimada e as redes de pesca estavam enterradas. Esse foi o tratamento da empresa com as famílias ribeirinhas. Ela reconhecia uns pescadores e outros não. A Norte chegou a não dar direitos de reassentamento para até 40 famílias moradoras do rio”.
Antônia diz que está disposta a morrer lutando pelos direitos dos seus amigos e irmãos do rio, mas admite que Belo Monte e seus impactos não têm volta. O valor para matar um rio, destruir um ecossistema e apagar a identidade de um povo custou 40 bilhões, com parte desse investimento vindo de dinheiro público através do BNDES para pagamento de propinas e incentivos aos influenciadores políticos que apoiaram sua construção.
Das 18 turbinas da barragem, apenas uma funciona, e o monstro que matou o rio e os peixes trabalha só 4 meses no ano. Já chegou a funcionar com meia turbina apenas. O estrago está feito e, ao contrário do que políticos e empresários prometeram, o empreendimento não trouxe o progresso, a riqueza e o crescimento comercial que a população esperava. A maior prova é que você procura por uma loja de canoas, remos ou motores de embarcação em uma cidade de pescadores e não encontra. Belo Monte queria o rio, mas isso não incluía nem os peixes, nem o pescador.
A Mongabay entrou em contato com a Norte Energia para esclarecimentos, e a empresa respondeu que “tendo em conta o monitoramento socioambiental do Trecho de Vazão Reduzida realizado nos últimos oito anos, cabe esclarecer que os impactos detectados vêm se mostrando de menor magnitude do que a prevista nos Estudos de Impacto Ambiental”.
A respeito da escassez de peixes, a Norte Energia alega que “o monitoramento realizado com famílias ribeirinhas do Rio Xingu demonstra que o consumo de alimentos de origem proteica é de, em média 35,5 kg per capita/ano, sendo o peixe o alimento proteico mais consumido. Assim, a taxa anual de consumo de pescado está acima da média mundial e nacional (20 kg e 9 kg, respectivamente). Esses dados, portanto, não indicam falta de peixes na região”.
A empresa também respondeu que está “realizando o processo de retorno de 322 famílias ribeirinhas para pontos localizados na Área de Preservação Permanente (APP) do reservatório, com acompanhamento do Ibama e também do Conselho Ribeirinho e seu grupo de apoio. Cerca de 40% dessas famílias já foram reassentadas e 7% estão em andamento”.