A pesca e o comércio do mero foram barrados no Brasil há duas décadas na tentativa de preservar suas populações. Todavia, as práticas não podem ser liberadas porque no período as capturas ilegais continuaram e não foram adotadas outras medidas para sua proteção, avaliam especialistas.
O mero é um gigante tranquilo. Adultos podem passar de 2,5 metros de comprimento e dos 400 kg. Mesmo assim, se aproximam da costa e de manguezais, sobretudo para se alimentar e reproduzir. Lentos e bonachões, se tornaram um alvo fácil de pescadores, com linhas e arpões.
A matança colocou o Epinephelus itajara nas listas nacional e global de espécies em risco de extinção e fez o governo federal declarar uma moratória para sua captura, desde 2002. O bloqueio foi renovado três vezes ao longo das décadas, mas tem previsão de ser liberado em outubro deste ano.
Até lá, crescerão as pressões dos setores da pesca comercial e artesanal pelo retorno das capturas legalizadas. Mas a realidade, conforme especialistas ouvidos por ((o))eco, é de que não há condições seguras para retomar as pescarias do animal na costa brasileira.
“O prazo para repor suas populações é justamente de duas décadas, sem pesca, mas as capturas ilegais são constantes em todo o litoral, não há fiscalização e nem políticas públicas que reduzam o nível de ameaça da espécie”, resume Matheus Freitas, do Projeto Meros do Brasil.
Os meros têm uma reprodução morosa. Começam a procriar só após 7 a 8 anos de vida, que pode chegar aos 40 anos. Mais de 100 peixes já foram registrados em grupos de reprodução. Sua carne é muito apreciada e, por seu porte impressionante, se tornou um desejado troféu de caça submarina.
As capturas ilegais ocorrem mais no Pará, Maranhão e estados do Sul e Sudeste, onde meros são vendidos quase livremente. Eles são limpos nos barcos e comercializados como garoupas, badejos e chernes. A identificação das carnes é feita por especialistas, inclusive com amostras de DNA.
Nos mercados, 1 kg de “garoupa” pode ser vendido por até R$ 50,00. Assim, um único peixe que fornece 100 kg de carne limpa pode render até R$ 5.000,00. Um negócio lucrativo que pode estar atirando no próprio pé ao reduzir a quantidade de pescado no mar.
Essa farsa comercial faz os consumidores contribuírem à extinção da espécie. “Estão comprando gato por lebre”, ressalta Freitas. A situação é mais grave no Pará, onde 90% dos meros capturados são jovens. “Estão matando a chance de renovação das populações”, reclama o pesquisador.
E tais impactos podem ir além dos limites nacionais. Na Amazônia estão 80% dos manguezais brasileiros. Meros que procriam nessas regiões ajudam a manter grupos em recifes como da vizinha Guiana Francesa, indica um estudo publicado em maio na revista Fishes.
Diante da pesca ilegal e do mero na lista de espécies ameaçadas, a moratória deve ser mantida, reforça André Cattani, coordenador do Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha (Rebimar), atuando desde 2009 no litoral do Paraná e sul de São Paulo.
Para ele, é preciso mais tempo para assegurar a renovação das populações da espécie. “O mero não é um recurso como a sardinha, que se reproduz bem rápido”, explica. “Se abrir a pesca terá um declínio bem rápido, como ocorreu no passado”, avalia o oceanógrafo.
Isso prejudicará o equilíbrio dos ambientes marinhos porque a espécie controla as populações de outros seres. “É um predador topo de cadeia”, diz Cattani. O menu dos meros é variado. Inclui outros peixes, lagostas, caranguejos, partes de polvos e até de tartarugas.
Além da pesca esportiva e comercial, os meros sofrem com a devastação de mangues, suas principais áreas de reprodução, e pela poluição das águas por químicos como pesticidas e metais pesados, que contaminam a carne vendida nos mercados. A falta de políticas públicas de conservação é outro risco.
Martin Dias é diretor científico da ong Oceana no Brasil. Segundo ele, o Brasil precisa definir rapidamente se os meros serão mantidos como um recurso pesqueiro ou como parte da fauna nacional que merece estratégias efetivas de conservação.
“Hoje a sociedade não aceita mais a pesca comercial de tartarugas e de tubarões, mesmo que sigam sendo capturados por comunidades tradicionais em certas regiões do país”, descreve o oceanógrafo e mestre em Ciência e Tecnologia Ambiental.
Para Dias, as moratórias isoladamente não reverterão o declínio de populações de meros e outras animais porque faltam ações concretas para conhecer os montantes e conter a pesca ilegal. “Não há um monitoramento sério para frear as pescarias predatórias”, denuncia.
Enquanto isso não ocorre, as quantidades de meros e de variadas outras espécies podem estar encolhendo ao longo da costa brasileira. Saber quantos restam é fundamental para as estratégias conservacionistas e também para a continuidade das pescarias legalizadas.
Censo subaquático
Assim como recenseadores percorrem casas pelo país todo para estimar a população brasileira, pesquisadores começaram a mergulhar ao redor de ilhas oceânicas para levantar números para os meros nos litorais do Paraná e sul de São Paulo. O esforço será de 2 anos.
Os locais amostrados pelo Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha (Rebimar) incluem o Parque Nacional Marinho das Ilhas dos Currais (PR), ilhas da Figueira (PR) e dos Castilhos (SP), além de áreas sem proteção legal. Mais de 20 meros já foram vistos num único mergulho nesses locais.
O levantamento trará informações como as variações na quantidade da espécie ao longo dos meses e os locais que mais usam para procriar e se alimentar. “Assim poderemos melhorar as estratégias de conservação”, projeta Matheus Freitas, do projeto Meros do Brasil.
Ou seja, novas e melhores áreas protegidas e outros planos governamentais, privados e de ongs tendem a ser desenhados com os dados extraídos do censo subaquático dos meros. Mas o trabalho não é corriqueiro. Envolve pessoal capacitado e equipamentos especiais.
Os mergulhadores descem de 15 metros a 30 metros, registram espécies em fotos e vídeos a cada 25 metros de extensão. Armadilhas fotográficas ficam de prontidão em locais mais restritos. Um respirador do tipo rebreather não produz bolhas ou ruídos que afastariam os animais.
Usualmente calmos, os meros podem ficar agressivos na época reprodutiva. Um sinal claro de que seu espaço precisa ser respeitado são os potentes estouros que fazem com o opérculo – uma estrutura óssea que protege as brânquias do animal – para afastar mergulhadores e outros seres.
Também serão vasculhadas regiões nos litorais do Paraná e de São Paulo onde foram afundados cerca de 8 mil blocos de concreto e 2 balsas graneleiras para formar recifes artificiais, desde 1998. As instalações foram autorizadas pelo Ibama.
As opiniões se dividem sobre a efetividade da estratégia. Enquanto alguns especialistas avaliam que as estruturas barraram a danosa pesca de arrasto e multiplicaram a quantidade de meros e demais seres – inclusive como atração turística –, outros ponderam que a mesma facilitou a captura de peixes.
“O Mero Watching (Observação de Meros) ganhou repercussão nacional e trouxe renda a toda uma cadeia turística que inclui os barqueiros locais. Todos ganham com a proteção desta espécie bandeira”, enfatiza André Cattani, oceanógrafo do projeto Rebimar, patrocinado pela Petrobras.
“Os recifes artificiais não recuperam populações, só agregam peixes já existentes. São ambientes propícios para a pesca ilegal, pois deixaram espécies mais vulneráveis. Já vimos pescadores em cima do recife artificial da Ilha dos Currais”, afirma Matheus Freitas, do projeto Meros do Brasil.
Os meros vivem do sul da Flórida (Estados Unidos) à Laguna, no litoral de Santa Catarina. Já foram avistados nas Bahamas e na maior parte do Caribe,
e até do outro lado do Atlântico, na costa africana entre Congo e Senegal. Proteger esse zelador dos mares exigirá atenção especial à pesca predatória.
A mudança de governo abriu alas à retomada dos debates entre pesquisadores e órgãos públicos, o que pode levar a uma melhor gestão da atividade. Como divulgou ((o))eco, o Brasil não tem um quadro geral do quanto é pescado em suas regiões costeiras e marinhas desde 2009.
“A pesca tem que ser levada a sério. A falta de monitoramento e controle deixa inúmeras espécies, comunidades e atividades comerciais que delas dependem muito mais ameaçadas. Afinal, a realidade de suas populações pode ser muito pior do que o estimado”, destaca Matheus Freitas.